quarta-feira, julho 21, 2021

Cria

 Ela é cria.


Ao mesmo tempo que escrevo, entre-vejo o livro "Entre mère et fille: un ravage". 

Ainda sim, ecoa a frase. Sou sua cria, e nada poderá mudar isso. Essa talvez seja uma das frases mais incomodas (infamiliar?) que me disse nos últimos tempos. 

Eu sou cria de uma mulher que conseguiu fazer o que era possível. Ela fez, ela tentou e conseguiu, mas ela também me devorou. 

Por vezes penso que ela ter me engolido foi a única forma dela nao ter sucumbido ao inferno que cheguei. Ou, que chegamos juntas. Ela conheceu o inferno antes de mim, mas uma forca estranha a fez seguir. Eu nunca quis seguir. Estava preparada pro sacrifício. 

Eu pude ver o inferno. Eu era o inferno. A morte, a dor, o sangue... Eu era a materializacao disso. 

Ate que a Morte jogou xadrez comigo. 

Seria a Morte um bom codinome para um psicanalista?

Queria poder fugir do fato de ser de ser sua cria, mas a realidade é que me resta ser isso, porque é o que eu sou.

 Nao é de todo mal. Mas depois de correr léguas, sinto que finalmente cheguei ao lugar de onde nunca sai. 

Haverá saída?

Sou sua cria e isso nao me resigna. Algo me dá vestigios de um para-além.


Sim, sou sua cria. 

Enquanto escrevo, (ainda) choro por dentro.

É con-fuso.. (5h agora?)

É choro de partida e ao mesmo tempo, de chegada.

É, por fim, ser (A Sua) cria.




terça-feira, maio 04, 2021

Sobre trabalhos manuais.

 É curioso, mas parece que de repente, preciso de todo o ar do mundo. Quanto mais eu respiro, me dou conta de que preciso de mais ar. É uma tentativa tola de se lembrar viva no meio do caos. 

Quando as intermitências da vida nos recortam em pedaços bem pequenininhos, é que chega a certeza: pode-se ate recosturar, juntar os pequenos pedaços com cola Tenaz, polvilhar gliter para parecer que o remendo ficou bonito (e não é que as vezes fica mesmo?!), mas uma pequenina parte vai embora. 

Ela fica escondida entre os tacos de madeira do assoalho, e só nos damos conta quando pisamos e ela fisga delicadamente nosso pé. Coisa curiosa é quando nem nos damos conta.

O fato é que diante da angustia, da confusão mental e da vista dos cacos no chão só me lembro de respirar. Não mais o respiro de vida que gera o grito do nascimento, mas aquele que me enche de coragem para poder me reconstruir. 

Acho de uma delicadeza muito grande a possibilidade de criarmos algo inteiramente novo. Delicado, mas trabalhoso. Imagina só, pegar pedaços de si com uma pequena pinça, colar, descolar, inventar uma forma nova...

Reconstruir-se é preciso. Viver realmente nos exige algo que não cabe em nenhuma palavra desse mundo inteirinho!



quarta-feira, abril 28, 2021

Sobre descobertas.

 Algo mudou,

Mas ainda não sei o quê 

Sinto que o choro e o grito saem diferente

Isso, quando se atrevem a sair. 

A vida atravessa de maneiras curiosas

E por vezes, desconserta o passo,

Desafina o som, 

Paralisa o tempo. 

Parece que ficamos suspensos no ar

Como observadores de nós mesmos.

Quem sou eu na cena? 

Estou tão longe 

E tão dentro de mim. 

Me causa estranheza. 


Mas hoje faz sol, 

Lembro-me do cheiro das cerejeiras. 

Descubro que há uma doçura na vida, 

No descompasso e no desencontro.


Palavras soltas.

Fernanda,

Sim, você, com A.
Tenho pouco a te falar. 
Você deve ter percebido, 
que experiências são coisas difíceis 
de colocar em palavras, 
seja elas quais forem.
Escritas ou não.

Veja bem,
Queria te dizer tantas coisas, 
realmente queria. 
Mas f-se.. 
ouvir faz parte de um tempo outro, 
onde nunca sabemos
quando, porque, onde..

Na minha frente tenho pouca coisa. 
Pés, vinho e lembranças.
Teria eu algo mais?
Voo e não sei pra onde. 
Deveria saber?




 

sexta-feira, janeiro 29, 2021

Sobre o dia que engoli minha mãe.

Foi assim de repente que tudo aconteceu. Eu não me dei conta na hora... Na verdade, sempre encontrei alguns vestígios, mas não tinha muita certeza. Não queria ter.

Tudo começou com uma grande indigestão. Sofria ânsias de vômito, espasmos, um mal-estar que não passava. Mesmo quando achava que estava bem, havia algo reclamando dentro de mim. 

As náuseas começaram a ficar mais e mais constantes. Foi ficando sério,e precisei buscar um especialista. Quando não eram náuseas, sofria de intensas diarreias, que tinham que ser contidas com muita água e papel. Era preciso higienizar aquilo da maneira que fosse.

Foi aí que percebi que estava ficando sem forças. Sucumbia a cada dia. 

Por fim, achei que tinha chegado ao fim do poço. Era um tratamento estranho, a base de um remédio chamado "palavras". A recomendação era falar 1 vez por semana, já que 2 vezes eu não conseguia. 

Comecei a ouvir vozes (de fato elas sempre estiveram lá, mas dessa vez eu as ouvia claramente, como nunca antes). Eram ordens duras, imperativos que me obrigavam a fazer coisas, desistir de outras... Mandamentos, os quais eu não podia parar para pensar porque existia uma urgência para colocá-los em pratica: se eu cumpro a ordem não preciso ouvir a voz reclamando.

Mentira. Havia sempre mais uma ordem. Algo mais a fazer.

Entre ordens, choro, álcool e muitas palavras, a vontade de vomitar ficou mais forte. Aconteceu então o primeiro episodio de vômito. Primeiro saiu uma gosma estranha, depois pedaços de história, até que o horror se sucedeu. 

Eu vomitei a minha mãe. 

Vomitei tudo aquilo que um dia eu repudiei. E também aquilo que mais amava, por isso, seguia na tentativa de me matar, porque não entendia que em um momento onde era vida ou morte, eu a matei pra que ela vivesse dentro de mim. 

Quem matou quem? Alguém morreu?

Ainda não sei. Sinto que não vomitei tudo.

Será que vou sentir falta dela dentro de mim?

Tenho usado o conteúdo dos excrementos como adubo. Pode ser que, algum dia, brote uma flor do asfalto.