terça-feira, novembro 17, 2020

Pensamentos.

Sigo perambulando entre os que tem cor, fome e cheiram mal. Insisto achando que a saída é a próxima esquina, a próxima dose, o próximo bonde. Enquanto isso, a vida passa e eu não a vejo. Por vezes, tenho que confessar, vejo flashs. Mas são rápidos e ressoam como a fúria de um trovão. Em geral eles causam uma bagunça enorme, da cabeça aos pés. Mas aí, eu esqueço. 

Esqueço porque em meio a bagunça me perco mais de mim, e me achar em meio a tudo pode ser muito assustador. Ainda guardo em mim a inocência e o medo de tudo, como quando eu era ainda uma criança. Na verdade, as vezes ainda me sinto uma criança. Daquelas que choram baixinho, escondidas no canto, que não querem pensar seus próprios pensamentos. 

Mas como ia dizendo, perder-me e encontrar-me é uma questão de segundos. Tem horas também que sou arrebatada por um sem números de palavras, sons e cores. É uma explosão. A vida acontece numa velocidade diferente. Sou acostumada a lentidão, procrastino até me dar conta de que perdi o tempo. Ou seria o tempo que se perdeu de mim?

Maior mistério da vida é o tempo. Queria poder segurar ele em minhas mãos e colocar num conta-gotas. Brincar de tempo, com tempo, seria uma diversão. Ia colocar gotas de tempo nas plantas, nos livros e também nas risadas. Imagina só, segurar o tempo. Mas ele é rápido e escorre. Não dá nem pra perceber. Agora mesmo, enquanto eu escrevo, ouço ele conversando comigo, com sua língua ferina: tic-tac, tic-tac.

Tic-Tac.  

Sobre descuidos.

As vezes me dá vontade 

de sumir

Sair voando e não voltar

Passarinhar por outras terras

As vezes me dá vontade 

de cantar

As músicas que sei

Aquelas que nem nunca ouvi

E até as que eu invento

As vezes me dá vontade 

de perder o rumo

Fazer o caminho “errado”

Escrever torto

Usar a xícara quebrada


E de vez em quando,

Mas só de vez em quando,

A vontade me toma à força

E quando vejo, 

A vontade se sente em casa.


Crônica de um dia de chuva e engano

O dia já começou estranho. Havia indícios de que nada sairia tão bem como o planejado. Levantou cedo, olhou as redes socais, e tentou se enganar achando que conseguiria dormir mais um pouco, afinal de contas parecia desnecessário despertar às 6 da manhã. Não adiantou.

Insistiu na possibilidade de tentar fazer o dia caber dentro de metas e planilhas. Insistência era um de seus nomes. Lembrou-se que ainda havia uma chance de fazer o dia recomeçar perfeito: a nova térmica de café estava pronta pra ser inaugurada. Nela continham as promessas de que, quem sabe, a mágica da felicidade finalmente invadisse o seu dia porta a dentro.

Preparou-se para o tão esperado café. Tomou banho, penteou-se devagar, afinal de contas, o dia só estava começando. Vestiu-se num tom casual esportivo e até treinou um sorriso antes de sair do banheiro.

Chegou a hora do café. Água quente e café em pó. Tudo a postos para usar a nova térmica. Passou o café e nem se permitiu sentir aquele cheirinho que tanto agradava. Na verdade, também não viu a água descendo pelo pó de café no filtro, coisa que tinha uma singularidade estranha, mas que a deixava feliz. 

Térmica, café, xícara. Pronto. O cenário estava pronto para dar as boas vindas à felicidade e ao novo dia que iria começar de novo. Provou o café. Foi ali, justamente naquele instante, que se deu conta que não era a térmica, nem o café, nem o dia, nem a manhã... O dessabor que habitava a sua boca acabou contaminando todo o corpo.  Era uma espécie de infestação que ia se espalhando pelos sentidos de uma maneira sorrateira, mas insistente. Pareceu um tanto de repente, mas não foi. Percebeu-se um tanto quanto daltônica. Estaria o dia de fato cinza? Cheiros e sabores se tornaram lembranças. 

Se percebeu viva porque seus olhos piscaram. Silêncio. A chuva começou a cair, mas ainda não sabia direito se eram pingos de chuva no chão da rua fria ou se eram lágrimas caindo na sala repleta de nadas.