sexta-feira, janeiro 29, 2021

Sobre o dia que engoli minha mãe.

Foi assim de repente que tudo aconteceu. Eu não me dei conta na hora... Na verdade, sempre encontrei alguns vestígios, mas não tinha muita certeza. Não queria ter.

Tudo começou com uma grande indigestão. Sofria ânsias de vômito, espasmos, um mal-estar que não passava. Mesmo quando achava que estava bem, havia algo reclamando dentro de mim. 

As náuseas começaram a ficar mais e mais constantes. Foi ficando sério,e precisei buscar um especialista. Quando não eram náuseas, sofria de intensas diarreias, que tinham que ser contidas com muita água e papel. Era preciso higienizar aquilo da maneira que fosse.

Foi aí que percebi que estava ficando sem forças. Sucumbia a cada dia. 

Por fim, achei que tinha chegado ao fim do poço. Era um tratamento estranho, a base de um remédio chamado "palavras". A recomendação era falar 1 vez por semana, já que 2 vezes eu não conseguia. 

Comecei a ouvir vozes (de fato elas sempre estiveram lá, mas dessa vez eu as ouvia claramente, como nunca antes). Eram ordens duras, imperativos que me obrigavam a fazer coisas, desistir de outras... Mandamentos, os quais eu não podia parar para pensar porque existia uma urgência para colocá-los em pratica: se eu cumpro a ordem não preciso ouvir a voz reclamando.

Mentira. Havia sempre mais uma ordem. Algo mais a fazer.

Entre ordens, choro, álcool e muitas palavras, a vontade de vomitar ficou mais forte. Aconteceu então o primeiro episodio de vômito. Primeiro saiu uma gosma estranha, depois pedaços de história, até que o horror se sucedeu. 

Eu vomitei a minha mãe. 

Vomitei tudo aquilo que um dia eu repudiei. E também aquilo que mais amava, por isso, seguia na tentativa de me matar, porque não entendia que em um momento onde era vida ou morte, eu a matei pra que ela vivesse dentro de mim. 

Quem matou quem? Alguém morreu?

Ainda não sei. Sinto que não vomitei tudo.

Será que vou sentir falta dela dentro de mim?

Tenho usado o conteúdo dos excrementos como adubo. Pode ser que, algum dia, brote uma flor do asfalto.